A AGÊNCIA PORTUGUESA DE REVISTAS
   
A IDEIA QUE VALIA MILHÕES (1956-1957)
 









 






por João Manuel Mimoso










 

No campo da banda desenhada a Agência Portuguesa de Revistas completou, finalmente, em Março de 1956, a ocupação dos segmentos de mais baixo poder económico com o lançamento de uma nova revista ao incrível preço de $20 (vinte centavos): a Colecção Grilo. Tratava-se de uma pequena folha de papel dobrada em duas, de que resultavam quatro páginas no formato 17x12 cm, nas quais iam impressas quatro histórias americanas numa base de continuação.

Esta improvável BD de cordel não chegou a durar dois anos e é hoje muito rara. Mas o formato, maior do que o do Condor Popular e menor do que o do Condor Mensal e o da Audácia, que compartilhava, aliás, com a revista Tigre começaria a fazer história alguns meses mais tarde quando foi adoptado para um conjunto de revistas, incluindo a famosa  Crónica Feminina.











 

No Verão de 1956 a falhada Antologia de Romances Célebres foi recuperada através da Colecção Salgari. Tratava-se de volumes com 32 páginas no formato 23,5x16,5 cm e capas de José Manuel Soares e Carlos Alberto Santos, esmaltadas como as da Colecção Tigre, cada um dos quais incluía a novelização em banda desenhada de um dos romances populares de Emílio Salgari. Inicialmente não eram numerados, como se não houvesse intenção de constituir uma colecção durável. Mas o sucesso deve ter justificado uma nova abordagem e os volumes começaram a ser numerados e publicados regularmente no dia 1 de cada mês (o início do mês era favorecido pelos editores porque os potenciais clientes tinham acabado de receber os vencimentos) ao preço de 5$00.

Cerca de dois meses mais tarde começou a ser publicado o romance de Júlio Diniz Os Fidalgos da Casa Mourisca, com desenhos e capas também de Carlos Alberto e de José Manuel Soares (o livro completo foi novelizado em oito volumes de BD).












 

 

A abordagem da condição feminina nas revistas de Mário de Aguiar e o entendimento que tinha da importância do mercado feminino é notável para a época. Nos suplementos da revista Mãos de Fada, por exemplo, a mulher era apresentada sobretudo como profissional. E não só enfermeira, costureira, empregada de balcão ou serviçal, mas também artista, professora, investigadora científica e, até, aviadora. Num dos textos publicados, chamado "Carta de Lisboa", a narradora queixa-se de estar "tão absorvida pela minha vida profissional que mal disponho de tempo para ir ao cinema...". Em 1956 o formato da revista já não era tablóide, tendo sido reduzido por sugestão de uma colaboradora que depois se tornou sua directora literária: Milai Bensabat.

   
           
 

Um dia, Mário de Aguiar cruzou-se com Milai Bensabat numa rua de Campo de Ourique e disse-lhe "Vamos lançar uma revista que as mulheres guardem nas algibeiras e nas carteiras" e convidou-a para a dirigir. Nenhum deles o podia adivinhar nessa altura, mas a ideia valia milhões!

A menção à finalidade e importância do formato é interessante: as revistas que Mário de Aguiar considerou serem para guardar numa malinha de mão tinham 16,7x12 cm (que passou a ser um dos formatos-padrão das publicações da Agência), interiores a preto e branco e capas a cores, tudo a um preço de 1$50 ou 2$00.

O primeiro título a sair neste novo formato foi a reformulada Colecção Cinema, cujo primeiro número da 9ª série, agora dedicado integralmente a um único filme, saíu a 10 de Outubro de 1956 para uma longa carreira de sucesso.

   
         
 

Em 2004, José Batista publicou no jornal Louletano um conjunto de fascinantes artigos de memórias dos seus anos como desenhador na Agência. Num deles explica a causa do aparentemente surpreendente sucesso da revista Cinema: os filmes tinham um pequeno número de cópias (as fitas celulósicas eram, como ainda são, muito dispendiosas) e por isso só passavam à exibição na Província quando saíam de cartaz nas principais cidades. Um cinéfilo que quisesse manter-se actualizado teria que vir regularmente a Lisboa ou ao Porto ver os últimos filmes; ou então comprar as revistinhas da Colecção Cinema por uns modestíssimos quinze tostões...

Algumas semanas mais tarde, o Álbum dos Artistas, cuja publicação tinha sido interrompida, voltou à estampa, também ele no mesmo novo formato e com cada número dedicado, agora, a um único artista.

   

 

 

   
 

Mas o convite que Mário de Aguiar dirigiu a Milai Bensabat não se referia a qualquer destas revistas, mas a uma nova publicação que foi chamada Crónica Feminina. O primeiro número (à esquerda) foi posto à venda a 29 de Novembro de 1956 com um conteúdo atraente e variado que incluía notícias e artigos de sociedade, moda, medicina, beleza, cinema, cultura, humor, etc. De todas as publicações da Agência Portuguesa de Revistas, a Crónica Feminina é a única que teve a distinção de dela se poder dizer que influenciou a sua época e um dia será, sem dúvida, tema de teses sociológicas. Mas nos meses que se seguiram ao lançamento era apenas uma revista de 32 páginas, com tiragens modestas. No entanto, a única potencial concorrente com tiragens significativas era a já estabelecida, se bem que mais aristocrática, Selecções Femininas, cujo preço de capa de 7$50 a destinava a um segmento do mercado muito mais abonado do que o alvo da Crónica Feminina, cujo preço era autenticamente popular.

   
           
  Mas a nova revista da Agência não tinha vindo só. Fazia parte de um conjunto de três novos títulos, padronizados no formato, no preço, e no eclectismo, que foram lançados em sucessão. Os outros dois eram a Crónica Masculina (o nº 1, que se ilustra à esquerda, foi posto à venda a 8 de Dezembro de 1956) e a Crónica Desportiva (lançada a 15 de Janeiro de 1957). Depois, não houve mais iniciativas editoriais no campo das publicações periódicas até ao Outono desse ano. A história das publicações então surgidas requer uma continuidade até 1958 e por isso será contada na próxima parte deste estudo.

Entretanto, na Primavera de 1957, o cenário tinha-se alterado, como veremos em seguida. As relações com a Editorial Bruguera sofreram uma reviravolta e talvez por isso a carteira de publicações estava a ser reequacionada. Foi decidido que das Crónicas Feminina e Masculina, apenas uma poderia continuar e, assim, a Crónica Masculina foi sacrificada, terminando no nº 20.

   
           
 

A Crónica Desportiva (à esquerda ilustra-se o nº 1), por outro lado, durou inalterada até ao nº 40, altura em que o formato e o preço foram aumentados, talvez numa tentativa de equilibrar as despesas. Mas as vendas devem ter declinado fortemente e a revista terminou pouco depois.

A Crónica Feminina, no entanto, viveria para fazer história atingindo, nos anos 60, uma tiragem inusitada de 150.000 exemplares semanais, tendo sido o veículo para a divulgação das fotonovelas em Portugal, e representando, só em publicidade, uma receita astronómica que em 1965 ultrapassava os 2.000 contos anuais.

Embora o formato possa não ter influenciado o sucesso diverso dos três títulos, não resisto a notar que os bolsos dos homens são muito mais pequenos do que os das mulheres...

   
           
 

Em Junho de 1956 a Agência Portuguesa de Revistas lançou uma colecção capital na história do cromo: Raças Humanas. Ilustrada com 128 brilhantes guaches de Vicente Rodriguez e com uma caderneta de atraente grafismo, a colecção tinha sido originalmente lançada no ano anterior, em Espanha, pela Bruguera, inaugurando a época de ouro dos cromos desta editora.

Raças Humanas foi lançada em Portugal com seis cromos substituídos por outros que ilustravam tipos regionais portugueses, sendo a primeira de várias colecções espanholas a ser adaptada à realidade local. Foi um sucesso extraordinário, tendo-se mantido como um dos best-sellers da Agência até ao início dos anos 60. As lições desse sucesso, de que a editora portuguesa era a principal beneficiária, não se devem ter perdido em Francisco Más, que representava os interesses da editora catalã em Portugal.

   
           
 

Alguns meses após Raças Humanas, foi lançada outra extraordinária colecção da Bruguera: Bandeiras do Universo. Embora o nome da Agência conste da capa, existe um detalhe que facilmente passa despercebido: num canto da contracapa está inscrito "Editorial Íbis, Lda". É que, entretanto, Francisco Más formara, com outros sócios, a sua própria editora.

A notícia deve ter colhido os responsáveis da Agência desprevenidos quando o fotólito da capa do álbum já estava pronto: a partir de então os direitos às publicações da Bruguera já não poderiam ser adquiridos directamente pela Agência Portuguesa de Revistas. A Íbis tornara-se a representante em Portugal da Bruguera e doravante a Agência teria que negociar com esse intermediário e nas suas condições. E se a Íbis se decidisse pela publicação própria de um qualquer título, entáo a Agência não poderia almejar a mais do que a um papel de simples distribuidora de uma publicação alheia.

   
           
 

Ao contrário de todas as colecções anteriores, Bandeiras do Universo saíu sem ser antecedida pelos anúncios no Mundo de Aventuras que costumavam prenunciar as iniciativas da Agência no campo do cromo. Presume-se que, sendo considerada publicação alheia, a publicidade, a existir, teria que ser paga pela própria Íbis e este simples facto basta para testemunhar o clima de mal-estar que prevalecia em 1957 nas relações entre as duas editoras.

A situação recorreu em relação às colecções da Bruguera que foram distribuídas durante os doze meses seguintes (Maravilhas do Mundo, Esquadras de Guerra e A Conquista do Espaço) em que o nome da Agência Portuguesa de Revistas já não consta, agora, da capa e, no caso de Esquadras de Guerra, nem sequer é mencionado no interior.

   
           
 

Embora continuassem a distribuir as colecções de cromos da Íbis/Bruguera até meados de 1958, os responsáveis da Agência não podiam estar satisfeitos com uma situação em que os lucros baixavam pela interposição de mais uma parte interessada (a Íbis) e adicionalmente perdiam a autonomia editorial. A Íbis também não podia estar satisfeita com a situação: além do mau ambiente criado, enquanto a Agência se mantivesse no circuito remanesciam antigos hábitos e a nova editora não seria verdadeiramente independente. À Íbis agradaria, assim, poder selar a sua autonomia confiando as publicações a um novo distribuidor.

   
           
 

Os responsáveis da Agência devem ter reconhecido, face à nova situação, que uma ruptura seria inevitável a um prazo mais ou menos curto. E encararam um cenário em que perderiam o acesso a todos os originais da Bruguera (cromos, publicações infantis, e romances) ficando, ademais, uma editora concorrente com o que agora consideravam seu. O lançamento de várias novas colecções de livros que não dependiam da Bruguera como fonte, a que se assistiu durante 1956 e 1957, pode ter representado uma tentativa de ocupação atempada de vários segmentos do mercado, com séries cuja continuidade estivesse à partida assegurada, para elevar barreiras à entrada de novos concorrentes.

A primeira dessa nova geração, lançada ainda em 1956, foi a Colecção Cristal, baseada em originais já antigos de Alice Ogando, escrevendo sob o pseudónimo "Mary Love" (ao lado o nº9 dessa colecção, com capa de José Manuel Soares).




   
   
  Especializada em temas românticos, Alice Ogando tinha, no entanto, a capacidade rara de conseguir escrever para vários meios sobre uma temática variada, como iria demonstrar nos anos seguintes sob múltiplos pseudónimos. Ressalvadas as diferenças de estilos, foi a colaboração que mais se aproximou da flexibilidade  de José de Oliveira Cosme e da de Roussado Pinto.

Em 1957 foram lançadas as novas colecções Violeta (à esquerda o nº40, da autoria de F.Dramamor, isto é, Laura Mendonça) e Negra (policial) baseadas principalmente em autores nacionais, muitos dos quais escrevendo sob pseudónimo. Além da Colecção Cristal, já referida, também é importante mencionar a já antiga Amorzinho, que nesta época passou a basear-se quase exclusivamento em originais de Alice Ogando, escrevendo sob o seu próprio nome ou sob os de Mary Love, Marge Grey  e Henri Marcel.




         
 

No mesmo ano foram ainda lançadas quatro colecções de livros de formato maior, baseadas, sobretudo, em originais de língua inglesa e com capas de excelente grafismo que, ao preço de 10$00, tentavam talvez capturar nichos mais sofisticados: Ciência e Ficção (de ficção científica); Heróis do Deserto (de aventuras- à esquerda o nº3); Crime; e Texas.

Nesta época os editores costumavam estabelecer contratos com os distribuidores mediante os quais estes lhes adiantavam parte da receita esperada das publicações que iam saindo à estampa. Desta maneira os editores podiam manter uma actividade mais intensa do que a que o seu próprio capital permitiria, com vantagem para ambas as partes. É possível que o entendimento que acabou por ser selado entre a Íbis e a Bertrand, que permitiu à esta substituir-se à Agência como distribuidora das publicações da Íbis, tivesse como base um acordo favorável a este respeito.
   
           

No início de 1958 a Íbis tornou-se, assim, totalmente independente da Agência Portuguesa de Revistas, iniciando imediatamente a publicação de colecções de cromos e, um pouco mais tarde, a de livros e revistas traduzidas de originais da Bruguera.  O facto de, nalguns livros já impressos, o nome da Agência ter sido coberto pela colagem de uma tira de papel com os dizeres "Propriedade da Editorial Íbis Lda" comprova que a separação final foi abrupta e violenta. Mas em negócios nada é gratuito e é portanto provável que a autonomia ganha pela Íbis em relação à Agência tenha também ficado condicionada pela sujeição à Bertrand, enquanto distribuidor exclusivo.

Quando a poeira assentou, em 1958, mais do que a cisão entre a Íbis e a Agência, tinha-se criado um fosso entre esta e a Editorial Bruguera. Quando em 1962 a Agência Portuguesa de Revistas enviou uma saudação às numerosas editoras estrangeiras com as quais mantinha relações, o nome da grande editora catalã, que por essa época se tinha já expandido a toda a América do Sul, não era sequer mencionado.


                   
 
Os Fidalgos da Casa Mourisca vol 4/8; capa de Carlos Alberto

Passaria cerca de uma década até a Agência voltar a comprar publicações à Bruguera numa base regular. Entretanto os seus responsáveis decidiram investir na diversificação de fornecedores e, sobretudo, no recurso à produção própria. Essa decisão, em 1957,  marca o início da Época de Ouro da Agência Portuguesa de Revistas.

Até 1956/57, a produção da Agência tinha dois carizes: um era genuinamente seu e apoiava-se  na produção nacional, com ou sem incorporação estrangeira; outro era o equivalente ao de uma sucursal portuguesa da Bruguera, que traduzia as edições espanholas e as publicava com as capas e o grafismo originais. Esse segundo fácies terminou forçadamente neste período. A Agência Portuguesa de Revistas ficou entregue aos seus próprios talentos e  recursos, num meio editorial tornado mais complexo e exigente pela entrada de um novo concorrente, apoiado pela grande máquina  da Bruguera. Mas a competição espicaçou-lhe a criatividade e, para crédito dos seus decisores, soube apoiar-se na intimidade com o seu mercado, na produção nacional, e na expansão para o Ultramar para sobre essas bases construir a sua grandeza.


             
2006-02-17
   



AGRADECIMENTOS

Ler a 6ª Parte (1958-1962)


 
       
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