Os Lusíadas de Luís de Camões

ilustrados por Carlos Alberto Santos

Canto IV estâncias 94-104

O Velho do Restelo- imprecação de um ancião, enquanto a frota larga do Restelo, contra os motivos que levam os homens a desafiar o Longínquo (e que talvez represente um dos pontos de vista contraditórios que se debatem no próprio Camões).

ouvir óleo de Carlos Alberto Santos (col. particular)
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Mas um velho, de aspecto venerando,
que ficava nas praias, entre a gente,
postos em nós os olhos, meneando
três vezes a cabeça, descontente,
a voz pesada um pouco alevantando,
que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
tais palavras tirou do experto peito:
experto- experiente.
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"Ó glória de mandar, ó vã cobiça
desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
c'ua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
que crueldades nele experimentas!"
vão- vaidoso.
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"Dura inquietação da alma e da vida
fonte de desamparos e adultérios,
sagaz consumidora conhecida
de fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
sendo digna de infames vitupérios;
chamam-te Fama e Glória Soberana,
nomes com quem se o povo néscio engana!"
fazendas- bens;
vitupérios- insultos;
se- sujeito indefinido, equivalente ao françês "on" (com quem se o povo engana= com que se engana o povo);
néscio- ignorante.
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"A que novos desastres determinas
de levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
d' ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?"
palmas- recompensas (na Grécia e na Roma Antiga, a palma era o prémio do vencedor).
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"Não tens junto contigo o Ismaelita,
com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
se queres por vitórias ser louvado?"
o Ismaelita- os Mouros;
o Arábio- Maomé (natural da Arábia);
lei- religião;
(é) por armas esforçado- é bom combatente.
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"Deixas criar às portas o inimigo,
por ires buscar outro de tão longe,
por quem se despovoe o Reino antigo,
se enfraqueça e se vá deitando a longe;
buscas o incerto e incógnito perigo
por que a Fama te exalte e te lisonje
chamando-te senhor, com larga cópia,
da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia."
o Reino antigo- Portugal europeu;
se vá deitando a longe- se vá deitando a perder;
chamando-te senhor, com larga cópia- chamando-te repetidamente "senhor".
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"Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
nem cítara sonora ou vivo engenho
te dê por isso fama nem memória,
mas contigo se acabe o nome e glória!"
(maldito o primeiro que) nas ondas vela pôs em seco lenho- maldito o inventor do navio;
Profundo- Inferno;
(Nunca) cítara sonora ou vivo engenho (te dê, etc...)- que nunca sejas cantado pelos poetas.
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"Trouxe o filho de Jápeto do Céu
o fogo que ajuntou ao peito humano,
fogo que o mundo em armas acendeu,
em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
e quanto para o mundo menos dano,
que a tua estátua ilustre não tivera
fogo de altos desejos, que a movera!"
filho de Jápeto- Prometeu, que segundo a mitologia clássica, roubou o fogo sagrado do Olimpo e com ele animou uma estátua de barro (a estátua ilustre), dando, assim, origem ao Homem.
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"Não cometera o moço miserando
o carro alto do pai, nem o ar vazio
o grande arquitector co filho, dando
um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
por fogo, ferro, água, calma e frio,
deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!"
Não cometera o moço miserando
o carro alto do pai- referência a Phaeton que roubou o carro do Sol;
nem o ar vazio o grande arquitector co filho- referência a Dédalo, construtor do labirinto de Creta, que, com o filho Ícaro, fugiu dele construindo asas com que voaram ao céu;
dando um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio- Ícaro caíu no Mar Egeu (também chamado "Icário") e Phaeton caíu no rio Pó.
    - ouça estas estâncias (mal lidas)- para estudantes estrangeiros
João Manuel Mimoso

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