Os Lusíadas de Luís de Camões

ilustrados por Carlos Alberto Santos

Canto X estânc. 145-156

Final d'Os Lusíadas- após um momento de desalento quanto ao estado da nação, Camões dirige-se a D.Sebastião recomendando-lhe os súbditos em geral, as classes que mais directamente contribuem para o projecto imperial em particular e, finalmente, a si próprio e à sua Arte.

ouvir I óleo de Carlos Alberto Santos (colecção particular)
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No mais, Musa, no mais, que a lira tenho
destemperada e a voz enrouquecida,
e não do canto, mas de ver que venho
cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
não no dá a pátria, não, que está metida
no gosto da cobiça e na rudeza
duma austera, apagada e vil tristeza.
no- não (castelhanismo);
lira- instrumento musical de poetas;
destemperada- desafinada;
favor- reconhecimento;
na rudeza de uma austera e vil tristeza- na incivilidade de uma sombria e indigna melancolia.
(Nota: esta estância e os 4 primeiros versos da est.146, de cariz derrotista, não se enquadram no tom das 147 e seguintes e representam, talvez, um aditamento posterior de Camões).
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E não sei por que influxo de destino
não tem um ledo orgulho e geral gosto,
que os ânimos levanta de continuo
a ter para trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
conselho estais no régio sólio posto,
olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.
por que influxo de destino- por que capricho da sorte;
não tem um ledo orgulho e geral gosto- não tem (a pátria, isto é, a população) um alegre orgulho e agrado generalizado (pela poesia);
a ter para trabalhos ledo o rosto- a enfrentar as canseiras com alegria;
no régio sólio- no trono real;
sois senhor só de vassalos excelentes- neste enquadramento, a frase é irónica; ver Nota à 145
147-
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Olhai que ledos vão, por várias vias,
quais rompentes leões e bravos touros,
dando os corpos a fomes e vigias,
a ferro, a fogo, a setas e pelouros,
a quentes regiões, a plagas frias,
a golpes de Idolátras e de Mouros,
a perigos incógnitos do mundo,
a naufrágios, a peixes, ao profundo.
plagas- regiões;
Idolátras- o mesmo que "idólatras", adoradores de ídolos, Hindus;
ao profundo- ao abismo (do mar).
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Por vos servir, a tudo aparelhados;
de vós tão longe, sempre obedientes;
a quaisquer vossos ásperos mandados,
sem dar reposta, prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados,
demónios infernais, negros e ardentes,
cometerão convosco, e não duvido
que vencedor vos façam, não vencido.

 

aparelhados- preparados;
ásperos mandados- ordens difíceis de cumprir;
sem dar reposta- sem contestar; sem ripostar;
cometerão- atacarão.
ouvir II
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Favorecei-os logo, e alegrai-os
com a presença e leda humanidade;
de rigorosas leis desalivai-os,
que assim se abre o caminho à santidade.
Os mais experimentados levantai-os,
se, com a experiência, têm bondade
para vosso conselho, pois que sabem
o como, o quando, e onde as cousas cabem
leda humanidade- alegre trato;
desalivai-os- aliviai-os;
levantai-os- promovei-os;
têm bondade para vosso conselho- têm competência para vossos conselheiros.
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Todos favorecei em seus ofícios,
segundo têm das vidas o talento;
tenham religiosos exercícios
de rogarem, por vosso regimento,
com jejuns, disciplina, pelos vícios
comuns; toda ambição terão por vento,
que o bom Religioso verdadeiro
glória vã não pretende nem dinheiro.
todos favorecei em seus ofícios (etc...)- todos apoiai (com leis benignas) nas suas profissões, que exercem segundo as suas aptidões;
de rogarem por vosso regimento- de rezarem pelo vosso reinado;
toda a ambição terão por vento- serão desinteressados.
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Os Cavaleiros tende em muita estima,
pois com seu sangue intrépido e fervente
estendem não sòmente a Lei de Cima,
mas inda vosso Império preminente.
Pois aqueles que a tão remoto clima
vos vão servir, com passo diligente,
dois inimigos vencem: uns, os vivos,
e (o que é mais) os trabalhos excessivos.
remoto clima- regiões remotas.
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Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
possam dizer que são para mandados,
mais que para mandar, os Portugueses.
Tomai conselho só d'experimentados,
que viram largos anos, largos meses,
que, posto que em cientes muito cabe,
mais em particular o experto sabe.
Galos- franceses (de "Gália"- França);
que nunca.. possam dizer que são para mandados, mais que para mandar, os Portugueses- que nunca possam dizer que os Portugueses são uma nação servil, em vez de senhorial;
posto que em cientes muito cabe (etc...)- apesar dos estudiosos terem muitos conhecimentos (teóricos), os experientes sabem mais do concreto.
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De Formião, filósofo elegante,
vereis como Anibal escarnecia,
quando das artes bélicas, diante
dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
não se aprende, Senhor, na fantasia,
sonhando, imaginando ou estudando,
senão vendo, tratando e pelejando.
Formião- filósofo grego que discursou perante o general Aníbal sobre a arte da guerra;
pelejando- combatendo.
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Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo,
de vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
com longa experiência misturado,
nem engenho, que aqui vereis presente,
cousas que juntas se acham raramente.
Mas eu que falo, humilde (etc...) de vós não conhecido nem sonhado?- Mas quem sou eu, que vós (o Rei) nem conheceis, para assim falar?
acabado- perfeito.
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Para servir-vos, braço às armas feito,
para cantar-vos, mente às Musas dada;
só me falece ser a vós aceito,
de quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
digna empresa tomar de ser cantada,
como a pressaga mente vaticina
olhando a vossa inclinação divina.
só me falece (etc...)- só me falta ser por vós aceite (como conselheiro?), pois tenho merecimentos que devem ser reconhecidos;
se o vosso peito digna empresa tomar de ser cantada- se vos lançardes num cometimento digno de ser celebrado em verso;
como a pressaga (etc...)- como se pressente da vossa propensão inspirada por Deus.
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Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
a vista vossa tema o Monte Atlante,
ou rompendo nos campos de Ampelusa
os muros de Marrocos e Trudante,
a minha já estimada e leda Musa
fico que em todo o mundo de vós cante,
de sorte que Alexandre em vós se veja,
sem à dita de Aquiles ter inveja!
O poeta realça o poder da sua arte dizendo: asseguro (fico) que em todo o mundo serão declamadas as poesias que exaltarão os vossos feitos, fazendo que em Marrocos sejais mais temido que tudo- Atlas, que deu o nome à cordilheira marroquina (também chamada Atlante) teria sido transformado em pedra pela visão da cabeça de Medusa- de maneira que Alexandre Magno se reveja em vós sem ter, assim, que invejar a glória de Aquiles (herói da Ilíada).
    - ouça estas estâncias-1ªParte ; Ouça a 2ª Parte
FIM d' OS LUSÍADAS
João Manuel Mimoso

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