Passos
da Cruz (XI )
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por Fernando
Pessoa
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Nota: antes dos comentários leia integralmente o soneto! | |||
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela E oculta mão colora alguém em mim. Pus a alma no nexo de perdê-la E o meu princípio floresceu em Fim.
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Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela e oculta mão colora alguém em mim - quando falo de mim, não é realmente de mim que estou a falar: há outro ser, que desconheço, que me usa como mensageiro; Pus a alma no nexo de perdê-la - tomei consciência e aceitei a perda da minha identidade; e o meu princípio floresceu em Fim - e obtive um objectivo (uma finalidade) para a minha vida. |
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Que importa o tédio que dentro de mim gela, E o leve Outono, e as galas, e o marfim, E a congruência da alma que se vela Com os sonhados pálios de cetim?
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Que importa o tédio que dentro de mim gela, e o leve Outono, e as galas, e o marfim- não me importa as consequências más: o tédio, a idade a começar a pesar (leve Outono); os divertimentos (galas= festas) e os bens materiais (marfim) que nunca gozarei. Que importa a congruência da alma que se vela com os sonhados pálios de cetim - que importa até a coerência do meu "eu" que vai perdendo importância (velar= ocultar ) face à perspectiva de um dia eu ser famoso (pálio de cetim= dossel de seda suportado por hastes que formava uma espécie de para-sol sobre os reis). O Poeta diz, basicamente, que outra consciência tomou conta dele com uma finalidade que parece não conhecer com exactidão mas que deve ser grandiosa e lhe assegurará um dia o reconhecimento geral. Por isso "vende a alma" ao seu destino sabendo que com isso se nega os prazeres mundanos. |
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Disperso… E a hora como um leque fecha-se… Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar… O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se…
E, abrindo as asas sobre Renovar, A erma sombra do voo começado Pestaneja no campo abandonado…
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Disperso… E a hora como um leque fecha-se - distraí-me noutra coisa... e a visão foi-se; E, abrindo as asas sobre Renovar, a erma sombra do voo começado pestaneja no campo abandonado - imagem simbólica do que se passou: o poeta tinha aberto as asas e começado o voo numa nova via (a tal que o levaria- como realmente levou! - à glória) mas, como se dispersou, a visão ficou incompleta e o voo foi apenas começado. A sua sombra solitária (erma) bate as asas no campo abandonado (isto é: numa parte da mente do poeta onde a atenção já não está). O termo "pestaneja" (que, quanto a mim, prejudica a sonoridade do verso) advém da educação inglesa do poeta: em português "pestanejar" é apenas um bater de pálperas mas em inglês "flutter" pode ser usado como pestanejo e como bater de asas. |
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João
Manuel Mimoso
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Lisboa, Portugal
2007-07-15
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