Passos da Cruz ( IV )
 
   
por Fernando Pessoa
    Nota: antes dos comentários leia integralmente o soneto!
   

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse

Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,

E, beijando-o, descesse p'los desvãos

Do sonho, até que enfim eu o encontrasse.

se eu beijasse teu gesto sem beijar tuas mãos- preferência pela espiritualidade (vida interior) por contrapartida com o lado físico da vivência (sem pôr em causa o sentido no contexto deste soneto, o poeta pode ter sido inspirado a escrever esta frase em consequência de uma aversão pelo amor carnal);

desvãos do sonho- recantos do sonho (o desvão de uma casa é o volume desaproveitado sob a cobertura).

     
   

Tornado Puro Gesto, gesto-face

Da medalha sinistra - reis cristãos

Ajoelhando, inimigos e irmãos,

Quando processional o andor passasse!...

gesto-face da medalha sinistra- gesto que fosse a face de uma medalha que só tivesse contra-face (sinistra= esquerda);

reis cristãos ajoelhando, inimigos e irmãos, quando processional o andor passasse- imagem (maravilhosa) de um puro gesto, simbólico, sem condicionantes nem finalidade- todos ajoelhando à passagem de uma imagem santa numa procissão.

     
   

Teu gesto que arrepanha e se extasia...

O teu gesto completo, lua fria

Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

 

Caverna em estalactites o teu gesto...

Não poder eu prendê-lo, fazer mais

Que vê-lo e perdê-lo!... E o sonho é o resto...

 

 

teu gesto que arrepanha e se extasia- que arrebata e (se) maravilha;

juncais - terrenos alagadiços onde crescem juncos (espécie de caniços herbáceos);

   

o teu gesto (...) lua fria subindo, e em baixo negros os juncais - oposição entre o Alto, branco, fisicamente inatingível mas desejável; e a Terra, palpável mas escura (que o poeta prefere recusar);

caverna em estalactites o teu gesto- imagem de um oco, que por ser oco se pode apreender mas não conter;

não poder eu (...) mais que vê-lo e perdê-lo, e o sonho é o resto- o poeta prefere ver (para despertar as sensações) e depois sonhar livremente, sem as limitações da realidade física.

   
   

Interpretação do soneto: Fernando Pessoa escreveu: "Viajar? [...] Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Polos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações? A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos." De uma maneira simplista, diria que deste texto se tiram duas conclusões com interesse para a interpretação do poema. Primeira, que o autor privilegiava a vida interior; segunda, que negava a realidade absoluta- a realidade de cada um é a sua interpretação pessoal dos estímulos exteriores, são as suas sensações. Mas há que tê-las, isto é: é necessário um estímulo exterior e o resto é o que a mente faz com esse estímulo.

O soneto inicia-se com um estímulo: a percepção de um gesto. É claro que no momento de escrever a poesia o próprio gesto é construído mentalmente, mas para isso foi necessário ter, alguma vez, visto o gesto e portanto podemos supôr que o soneto começa com a percepção de um gesto real. Mas imediatamente o poeta começa a divagar e descreve os seus pensamentos sugeridos pelo gesto. E, num soneto, pinta um quadro surrealista... a mente divaga e constrói imagens associadas ao gesto: reis cristãos ajoelhando à passagem de uma procissão; a lua nocturna subindo sobre um juncal; e uma caverna com estalactites.

E nos dois últimos versos o soneto conclui, resume-se e explica-se numa chave de ouro abreviada: Pessoa desejava não poder prender o gesto (isto é, gostava que lhe fosse impossível tocar na mão) mas tão apenas poder olhá-lo durante o curto lapso que dura ("vê-lo e perdê-lo"). E tudo o mais será uma divagação, ou construção mental (" E o sonho é o resto...").

Trata-se de uma reafirmação da preferência pela interioridade que o Poeta desenvolve muitas vezes. Ver por exemplo o trecho "Quantos Césares fui" do Livro do Desassossego. Mas há mais um pequeno detalhe que é de notar, sobretudo tendo em atenção a exactidão da terminologia utilizada por Pessoa - quando escreve é porque quer dizer exactamente o que escreveu. Quando diz "Não poder eu prendê-lo..." entendo que ele desejaria que qualquer limitação física o impedisse de poder prender a mão da mulher. De onde deduzo uma aversão declarada ao contacto físico com o sexo oposto e um desejo de não ter o embaraço de mostrar que evita voluntariamente esse contacto.

       
     
João Manuel Mimoso
   
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2007-07-11
   
Nota: interpretação do soneto escrita a 2008-05-01