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LIVRO DO DESASSOSSEGO- Uma trovoada de Verão- excertos (Fernando Pessoa)
       
Voz 1  
De sobre a parte norte da cidade, as nuvens conjugavam-se lentamente numa nuvem só - negra, implacável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros. Dentro em pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com o esperá-la. Suava-se na sombra da sala grande do escritório. "Vem aí uma grande trovoada", disse o Moreira, e voltou a página do Razão.

Às três horas da tarde falhara já toda a acção do sol. Foi preciso - e era triste porque era verão - acender a luz eléctrica - primeiro ao fundo da sala grande, onde estavam empacotando as remessas, depois já a meio da sala, onde se tornava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os números das senhas de caminho-de-ferro. Por fim, já eram quase quatro horas, até nós - os privilegiados das janelas - não víamos agradavelmente para trabalhar. O escritório ficou iluminado. O patrão Vasques atirou com o guarda-vento do gabinete e disse para fora, saindo: "Ó Moreira, eu tinha que ir a Benfica mas não vou; vai-se fartar de chover." "E é lá desse lado", respondeu o Moreira, que morava ao pé da Avenida. Os ruídos da rua destacaram-se de repente, alteraram-se um pouco, e era, não sei porquê, um pouco triste o som das campainhas dos eléctricos na rua paralela e próxima. [Chovia!]

EM CONSTRUÇÃO
Voz 1  

Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou.

Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou, O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo, O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais.

 
Voz 1  

O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incómoda. Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhámos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos eléctricos tinham também uma socialidade connosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.

 
Voz 1  

Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua estreita do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espaço claro.

Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, "Podem sair", e disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-lhe um "até amanhã" cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.

 
   

 

Index of poems with explanation and readings

2007, September 10
     
  • João Manuel Mimoso