As figuras de presépios
       
   

No livro Vida e Arte do Povo Português, coordenado por Luiz Chaves e publicado em finais de 1940 pelo Secretariado de Propaganda Nacional, escrevia Santos Júnior no capítulo sobre "Bonecos de barro":

(...) há três regiões produtoras de bonecos de barro que merecem uma especial referência. São elas: Barcelos, Estremoz e Vila Nova de Gaia. (...) Fernanda de Matos Cunha - 1932- ao analisar a série dos produtos saídos das oficinas barcelenses, cita "meninos (...), músicos de banda regimentais, meninas com chapéus arcaicos (...), santos (...), animais (...)" As estatuetas zoomórficas constituem um grupo notável na imagética popular barcelense. (...) Os bonequeiros de Barcelos modelam igualmente objectos utilitários de uso comum (...)

Ao longo de metade das cerca de cinco páginas do seu ensaio, Santos Júnior refere-se aos "bonequeiros de Barcelos", sem nunca mencionar qualquer produção de figuras de presépio. Tal interesse pela região justifica-se: o autor era natural de Barcelos e portanto conhecedor interessado da situação local. O facto de não mencionar as figuras de presépio, apesar de se referir com detalhe à fabricação de bonecos com recurso a moldes de gesso, só pode ter uma explicação: não havia, em 1940, produção local relevante dessas figuras...

Depois de Barcelos o autor refere-se à produção na região do Porto, mencionando os bonecos de cascata produzidos pelos mascateiros de Vila Nova de Gaia (trata-se de pequenas figuras reproduzindo tipos locais e utilizadas num equivalente portuense dos "tronos de Santo António" de Lisboa mas muitíssimo mais ricos e elaborados) e também os (...)Bonecos de Estremoz, figurinhas do presépio, (que) têm um cunho muito especial. (figuras 1 e 2)

Figura 1a, b (à esquerda)- Bonecos de cascata (pastor com croça e mulher com cordeiro) Vila Nova de Gaia.
Figura 2 (acima)- Típico presépio de Estremoz (ilustrações de Vida e Arte do Povo Português, 1940).
   

Natal de 1939. Começara a Guerra e o Estado Novo, nunca muito aberto ao exterior, parece ver no horror que começou a cair sobre a Europa a justificação de um enquistamento- que sempre acarinhara- nos antigos valores nacionais, populares e puros. E uma vez que era Natal, alguém reparou nos então moderníssimos e alienígenas Pais Natal de casaco vermelho e cheirando a Coca-Cola (anteriormente quem providenciava presentes era a mediação do Menino Jesus). E já agora, que novidade de importação eram as Árvores de Natal, arremedos de abeto feitos à custa de pinheiros cortados às matas (1)? Onde estavam, por contrapartida, os portuguesíssimos presépios?

A campanha foi iniciada por Luiz Chaves na Rádio Renascença, nesse mesmo Natal de 1939 "como português, como católico, como etnógrafo". "Nacionalizemos o Natal!!!" bradou o Padre Moreira das Neves aos microfones da Emissora Nacional no dia de Natal de 1940. "Fora o Pai Natal! Fora a Árvore de Natal! Voltemos ao presépio, que o povo continua a defender em toda a sua pureza e ingenuidade" (Luiz Chaves in Acção, Ano I, nº 32, 27-11-1941). "Natal e Presépio; Presépio e Natal. O presépio ao centro, sempre! O foco donde irradia toda a luz! Pelo Presépio! Por Cristo! Por Portugal!" (idem, nº 35).

Um ano depois, na mesma revista (nº 87) o infatigável Luiz Chaves ensinava a fazer um presépio: (...) Umas figuras recortadas em papel, coloridas ou feitas de barro cru, estampadas e coladas em cartão. Temos desses bonecos populares, tão pitorescos, de Gaia ou Estremoz. Vamos. Mãos à obra! É já!

As "figuras estampadas e coladas em cartão" referem-se aos presépios impressos que a partir desta época e até à década seguinte eram publicados como separatas de revistas infantis e juvenis ou vendidos isolados nas papelarias e tabacarias. Mas muito mais interessante é a referência aos "bonecos de Gaia e Estremoz" que nos diz duas coisas: em Barcelos ainda não havia produção notável de figuras de presépio no Natal de 1942; em Gaia, ao que parece, os mascateiros já tinham começado a produzi-las. Esta interpretação concorda com uma pequena nota publicada pelo mesmo Luiz Chaves no nº48 da revista Ocidente (Abril de 1942) sob o título "Os bonecos de presépio e as suas feiras" em que diz: Não pára a propaganda das feiras dos "bonecos de presépio" para o próximo Natal. (...) Da Província chegam perguntas, os "bonequeiros" pedem informações, outras pessoas rogam que lhes digam o que devem fazer e como o devem fazer. As estações competentes encarregaram-se de organizar, ordenando, informando e estão a trabalhar. Trabalhem os que devem, actuem os que podem, e todos para diante.

   
   

Antes de abordar os inícios e evolução das figuras de presépio de Barcelos, convém referir as figuras mais recorrentes que serão utilizadas na exposição para fins descritivos e comparativos:

  • A Sagrada Família (de que utilizaremos Nossa Senhora);
  • Os animais do estábulo (em geral um boi e um jumento);
  • Os Reis Magos (montados em camelos ou em adoração);
  • Os pastores (em particular o pastor com a croça de palha);
  • As mulheres do povo;

A razão de se utilizar estas e não outras reside no seu sucesso junto ao mercado (isto é, às crianças que escolhiam as figuras para os pais comprarem) donde resulta serem oferecidas por todos os fabricantes e constituirem, portanto, boas opções para fins comparativos. Os Reis Magos foram figuras especificamente feitas para o presépio enquanto que as mulheres do povo nos seus afazeres eram tipicas figuras de cascata que foram integradas nos presépios pelo seu atraente colorido.

Poder-se-á notar que algumas figuras omnipresentes nos presépios barrocos portugueses não ocorrem ou são raras nos presépios de Barcelos: os pastores da Anunciação e o anjo respectivo (não ocorrem); a ofertante com dois pintaínhos (não ocorre); os soldados romanos (não ocorrem); os músicos (são raros e os que se encontram provêm geralmente de cascatas).

   
   

As mais antigas figuras de presépio fabricadas em Barcelos que encontrei (figuras 3, 4 e 5) vieram-me num grupo de típico figurado moldado da região. São caracterizadas pelo detalhe, pela qualidade da argila (muito fina e branca após cozedura), e sobretudo, por uma pintura com tintas fabricadas localmente com pigmentos em pó e que não mostram traços de resina (a resina é o veículo que incorpora o pigmento e forma um filme colorido sobre a peça pintada). Por isso, o pigmento pulverolento destaca-se facilmente das superfícies. Neste momento não me é possível datar as peças com exactidão, mas face ao anteriormento exposto presumo que datarão da década de 1940.

Os moldes destas peças não foram utilizados na produção de qualquer dos fabricante que nas décadas de 1950 e 1960 difundiriam o presépio de Barcelos por todo o País embora algumas características do talhe (mãos, pedestal...) sugiram uma relação com peças posteriores. Não é possível, neste momento, dizer se se tratou de uma tentativa isolada e abandonada ou se o fabricante fez posteriormente figuras mais simples e baratas...

   
Figura 3 (Rei Mago); Figura 4 (Ofertante com galo); Figura 5 (Pastor com croça de palha- também chamada "palhoça"). Barcelos, década de 1940.
Figura 6- Mago (cerca 1950)

Na verdade aconteceu um fenómeno curioso (apesar de previsível pelas leis da Economia): a campanha publicitária a favor dos presépios criou uma procura onde havia pouca ou nenhuma oferta- em consequência, as primeiras figuras tinham preços extraordinariamente altos para a época. Isto atraíu muitos fabricantes a entrarem no negócio para recolherem o seu quinhão e em menos de uma década os preços caíram para menos de metade dos iniciais... mas o detalhe da moldagem e, sobretudo, do acabamento pintado também declinou.

A procura atraíu, também, uma variedade de agentes comerciais. Um catálogo datando do Natal de 1948 da União Gráfica de Lisboa, o maior sortido do país em estatuetas (sic) de barro coloridas para presépios (isto apesar de se tratar de uma empresa cujo negócio principal, evidentemente, nada tinha a ver com a venda de figuras cerâmicas) indicava como preço de um terno de Reis a cavalo com 10 cm (o tamanho corrente) 29$00. Em 1960 cada mago num camelo custaria 2$50 a 3$50. O mesmo catálogo indicava como preço de pastores e figurantes (sic) com 8cm 5$20- custariam 1$50 a 2$00 cerca de uma década mais tarde. O presépio mais caro oferecido neste catálogo- 13 figuras com 40cm, incluindo um camelo com criado preto (sic) , e 10 ovelhas- custava uns astronómicos 848$50! Nas ilustrações deste catálogo conservado na Biblioteca Nacional não se reconhecem figuras de Barcelos.

A figura 6 ilustra um rei mago em adoração que deve datar desta época e está marcado "7$50" (o preço, na época, de uma refeição completa num bom restaurante)...

       
    As figuras 7, 8, 9 e 10 ilustram figuras de presépio fabricadas em Barcelos provavelmente no início da década de 1950. Estas são das mais antigas figuras que aparecem em quantidades apreciáveis e devem representar os primeiros tempos da fabricação local sistemática de figurado moldado para presépios.

Figura 7 a, b, c- Rei Baltasar, figura arcaica de presépio de Barcelos (cerca de 1950).

Este pitoresco rei negro, de singular candura, ilustra os tipos iniciais caracterizados por um figurado deficiente, pintura manual com tintas cujo poder de cobertura era limitado, uso de "douradura", e representação peculiar dos olhos (aqui, no camelo).

Figuras 8, 9 e 10 (da esquerda para a direita)- Figuras provenientes do mesmo presépio fabricado em Barcelos (primeira metade da década de 1950). A figura da Virgem, tal como a do boi, iriam ser aperfeiçoadas e produzidas com a mesma morfologia geral durante várias décadas por vários fabricantes (note-se os olhos, a aparência de guache, e o uso liberal de tinta dourada ou "douradura")
   
   

Finais dos anos 50. Em Lisboa as novas iluminações de Natal alegram as ruas e altifalantes derramam interminavelmente as mesmas músicas natalícias sobre as ruas da Baixa. Nos Grandes Armazéns do Chiado, mesmo à entrada da secção de brinquedos, dois longos balcões expõem bolas de vidro coloridas para pendurar no pinheiro natalício que os rogos dos detratores nunca conseguiram secar, estrelas feitas de papel prateado, bonecos de madeira representando o Pai Natal que também sobreviveu, sinos coloridos com pequenas lâmpadas no interior... Mas o que mais atrai os olhares das crianças é o colorido da festa miniatural dos bonecos natalícios de Barcelos- figuras de presépio e figuras de cascata reaproveitadas, incluindo casas rurais de traça moderna e igrejas de aldeia (!).

Subindo a colina do Chiado, na Praça Luís de Camões, uma vintena de tendeiros propõem produtos ainda mais criativos a preços convidativos: brinquedos de madeira e de lata, piões, gaitas e apitos, e figuras de presépio de todas as descrições (incluindo algumas de barro quase cru, toscamente pintadas). Os preços estão marcados na base e variam do tostão por uma pequena pomba até aos 7$50 pelo Castelo de Herodes. Todos os preços são, claro, flexíveis e uma compra de meia dúzia de peças acarreta uma longa discussão durante a qual a promitente compradora lança olhares significativos à venda contígua, como se as figuras de barro pintado lhe acenassem gestos convidativos. Por fim acerta-se o preço que a mãe paga e a vendedora oferece um pequeno pato de barro ao menino que a mãe contempla enquanto lhe perpassa pela mente a ideia indigna de que devia ter forçado um preço ainda mais baixo...

Nas figuras seguintes vamos visitar as bancas destes tendeiros natalícios, identificando as diversas produções cujas fábricas de origem estão, infelizmente, perdidas (a menos que algum leitor me possa ajudar a identificá-las).

     
Figura 11a, b, c- Produtos típicos da Fábrica 01. Figuras com olhos rasgados; mãos com dedos bem formados, de igual espessura. Pedestal campaniforme, por vezes com entalhes, fundo branco, vazado, em geral sem furos. Pintura à pistola com acabamento manual.
     
Figura 12a, b, c, d, e, f- Produtos típicos da Fábrica 02 caracterizada pelas muitas figuras femininas com trajes do Norte, pedestais circulares ou rectangulares, vazados e pintados de branco, com pequeno furo. Pintura predominantemente manual, topo do pedestal frequentemente pintado de creme. Tipicamente as pequenas figuras regionais custavam 1$50 em 1960.
     
Figuras 13 a, b, c, d, e, f- Produtos típicos da Fábrica 03 caracterizada por fabricação pelo processo da barbotina (enchimento do molde com uma solução líquida de argila, por contrapartida com as restantes fábricas em que os moldes eram enchidos "a dedo" com uma pasta sólida), pintura à pistola com acabamento a pincel que incluía o debruado dourado das vestes, pedestal frequentemente matizado, base pintada de branco com faixa periférica pintada de negro- este acabamento da base era característico, na região de Barcelos, das produções fabris mais cuidadas.
     
Figuras 14 a) até j)- Produtos típicos da Fábrica 04 caracterizada por figuras masculinas com barba e geralmente com um chapéu negro de abas, pedestal verde vazado com escorridos na periferia da base, pintura manual. Base frequentemente marcada com um código identificativo da figura. Correntes cerca 1970. Algumas características aproximam estes produtos aos da Fábrica 01.
     
   

Ao contrário de outras memórias que não sobreviveram ao Século XX, o legado do persistente Luiz Chaves, do Padre Moreira das Neves e da arte e engenho dos pequenos industriais de Barcelos, ainda está hoje connosco.

Dos vários fabricantes actuais, deve ser feita uma menção especial à Cerâmica Leão. Fundada há cinco décadas, fabrica numa base verdadeiramente industrial todo o tipo de figuras religiosas com criações de grande mérito e uma estética própria. Na época natalícia produz figuras de presépio com dimensões que vão dos 9cm de altura até aos 68cm (!!). Não ilustro nenhuma porque o catálogo da empresa está na Net e pode ser consultado aqui.

   
EM CONSTRUÇÃO
     
     

NOTAS

(1)- a primeira árvore de Natal a ser vista em Portugal tinha, na realidade, sido erguida no Palácio de Cristal do Porto em 1865, no entanto o conceito era ainda considerado estrangeiro e reprovável quase 80 anos mais tarde;

   
25 de Junho de 2008
   
João Manuel Mimoso
     
   
Índice sobre figurado industrial de Barcelos