TABACARIA
de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)- Janeiro
de 1928
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Não sou nada.
Nunca serei
nada.
Não posso querer
ser nada.
À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo.
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Janelas do meu
quarto,
Do meu quarto
de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem
quem é, o que saberiam?),
Dais para o
mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua
inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente
real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério
das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte
a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino
a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
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Estou hoje vencido,
como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido,
como se estivesse para morrer,
E não tivesse
mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida,
tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de
carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da
minha cabeça,
E uma sacudidela
dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
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Estou hoje perplexo,
como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido
entre a lealdade que devo
À Tabacaria
do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação
de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
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Falhei em tudo.
Como não fiz
propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem
que me deram,
Desci dela
pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao
campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei
só ervas e árvores,
E quando havia
gente era igual à outra.
Saio da janela,
sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
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Que sei eu do
que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos
que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste
momento
Cem mil cérebros
se concebem em sonho génios como eu,
E a história
não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá
senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio
em mim.
Em todos os
manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não
tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em
mim...
Em quantas mansardas
e não-mansardas do mundo
Não estão nesta
hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações
altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente
altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe
se realizáveis,
Nunca verão
a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para
quem nasce para o conquistar
E não para
quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado
mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado
ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito
filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e
talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não
more nela;
Serei sempre
o que não nasceu para isso;
Serei sempre
só o que tinha qualidades;
Serei sempre
o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a
cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz
de Deus num poço tapado.
Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me
a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol,
a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que
venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos
das estrelas,
Conquistamos
todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos
e ele é opaco,
Levantamo-nos
e ele é alheio,
Saímos de casa
e ele é a terra inteira,
Mais o sistema
solar e a Via Láctea e o Indefinido.
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(Come chocolates,
pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as
religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena
suja, come!
Pudesse eu
comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso
e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo
para o chão, como tenho deitado a vida.)
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Mas ao menos
fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia
rápida destes versos,
Pórtico partido
para o Impossível.
Mas ao menos
consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos
no gesto largo com que atiro
A roupa suja
que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa
sem camisa.
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(Tu que consolas,
que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega,
concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia
romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa
de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa
do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte
célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei
quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso,
seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração
é um balde despejado.
Como os que
invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo
e não encontro nada.
Chego à janela
e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas,
vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes
vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães
que também existem,
E tudo isto
me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto
é estrangeiro, como tudo.)
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Vivi, estudei,
amei e até cri,
E hoje não
há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada
um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez
nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível
fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas
existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo
para àquem do lagarto remexidamente.
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Fiz de mim o
que não soube
E o que podia
fazer de mim não o fiz.
O dominó que
vesti era errado.
Conheceram-me
logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis
tirar a máscara,
Estava pegada
à cara.
Quando a tirei
e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado,
já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora
a máscara e dormi no vestiário
Como um cão
tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever
esta história para provar que sou sublime.
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Essência musical
dos meus versos inúteis,
Quem me dera
encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse
sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos
pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete
em que um bêbado tropeça
Ou um capacho
que os ciganos roubaram e não valia nada.
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Mas o Dono da
Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com
desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto
da alma mal-entendendo.
Ele morrerá
e eu morrerei.
Ele deixará
a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura
morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa
altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua
em que foram escritos os versos.
Morrerá depois
o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites
de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará
fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma
coisa defronte da outra,
Sempre uma
coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível
tão estúpido como o real,
Sempre o mistério
do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto
ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra
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Mas um homem
entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade
plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me
enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar
escrever estes versos em que digo o contrário
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Acendo um cigarro
ao pensar em escrevê-los
E saboreio
no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo
como uma rota própria,
E gozo, num
momento sensitivo e competente,
A libertação
de todas as especulações
E a consciência
de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
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Depois deito-me
para trás na cadeira
E continuo
fumando.
Enquanto o
Destino mo conceder, continuarei fumando.
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(Se eu casasse
com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse
feliz.)
Visto isto,
levanto-me da cadeira. Vou à janela.
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O homem saiu
da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o;
é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da
Tabacaria chegou à porta.)
Como por um
instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus,
gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me
sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
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