FADO MALHOA ( José Galhardo)
  Nota: O poema refere-se ao óleo "O Fado" da autoria de José Malhoa.
Alguém,
que Deus já lá tem,
pintor consagrado,
que foi
bem grande e nos dói
ser já do passado,
cantou numa tela,
com arte e com vida,
a trova mais bela
da terra mais querida.

- "alguém, que Deus já lá tem, pintor consagrado"- o pintor José Malhoa.

- "pintor consagrado (que) nos dói ser já do passado"- que lamentamos já ter morrido".

- "a trova mais bela da terra mais querida"- o fado português.

Subiu
a um quarto que viu
à luz do petróleo
e fez
o mais português
dos quadros a óleo:
um zé de samarra
com a amante a seu lado,
com os dedos agarra,
percorre a guitarra,
e ali vê-se o Fado!

- "um quarto que viu à luz do petróleo"- um quarto iluminado por um candeeiro de petróleo (a luz da chama é amarela e altera as tonalidades; é, também, uma luz fraca e o poeta explica assim os tons quentes mas sombrios da pintura porque o artista viu a cena "à luz do petróleo").

- "um zé de samarra"- um anónimo que personifica uma classe (a samarra é uma espécie de casacão que o personagem pintado tem vestido apenas no braço esquerdo). O "Zé" (abreviatura de "José") e a "Maria" são utilizados para personificar anonimamente o povo português- relembre-se o Zé Povinho de Rafael Bordallo Pinheiro e as referências do antigo primeiro-ministro Durão Barroso que dizia "conversar com o Zé" querendo significar que escutava a voz do Povo.

Faz rir
a ideia de ouvir
com os olhos, senhores.
Fará,
mas não para quem já
ouviu, mas em cores.
Há vozes de Alfama
naquela pintura
e a banza derrama
canções de amargura.

- Alfama é um bairro popular de Lisboa associado, tal como a Mouraria, ao Fado.

- "banza"- guitarra portuguesa

Dali
vos digo que ouvi
a voz que se esmera:
boçal,
um faia banal
cantando à Severa.
Aquilo é bairrista;
aquilo é Lisboa,
boémia e fadista,
aquilo é de artista;
aquilo é Malhoa!

- "boçal"- rude, sem educação.

- "faia"- fadista (o poeta ouve, na sua imaginação, um rústico esmerando a voz para impressionar a amante- que seria a lendária Severa a quem, claro, só a melhor interpretação fadista poderia tocar).

Ouvir: o Fado Malhoa por João Villaret (1950s)

Ouvir: O Fado Malhoa foi escrito para Amália Rodrigues (música de Frederico Valério) e cantado pela primeira vez em 1947 num curioso filme curto em que a fadista "entra" no quadro. Podem vê-lo aqui:

http://www.youtube.com/watch?v=A7HBAu0n5Lk

Nesta versão a letra é cantada na sua totalidade mas a música ainda não está completamente desenvolvida e a interpretação é apenas a promessa do que estava para vir. Tentem comprar uma gravação dos anos 50.

O Fado Malhoa foi posteriormente gravado por Amália como fado-canção (por exemplo: Alvorada MEP 60081) e por Madalena Iglésias cerca de 1966, com orquestra, para a Editora catalã Belter, constando do álbum "Madalena Iglésias canta Portugal". Uma gravação de sofrível orquestração mas em que se admira a excelência da voz. Note-se que nestas versões de fado-canção a primeira metade da terceira estância não é cantada e que, no caso de Madalena Iglésias, curiosamente a cançonetista não pronuncia distintamente a palavra "boçal"...

   

Links:

texto sobre o Fado Malhoa no blog anomalias.weblog.com.pt

um interessante artigo de Michael Colvin sobre a génese do mito da Severa.

busca no Google sobre os modelos utilizados no quadro de Malhoa.

João Manuel Mimoso
 
Lisboa, Portugal, 2007-06-20.