Sobre a fantasia e o humor de Vilhena...

A generalidade dos autores conta histórias que tenta enquadrar no mundo real e basear na sua própria experiência. Alguns autores de géneros ditos fantásticos criam universos diferentes do nosso e pedem ao leitor que os aceitem como premissa. Uma vez aceite a "realidade" e as leis sociológicas ou outras desse mundo, contam a história enquadrada pelos parâmetros desse novo universo. Tolkien, por exemplo, descreve um mundo onde existem seres fabulosos e onde a magia é uma realidade palpável, e depois usa-o como cenário do ciclo do Senhor dos Anéis.

Vilhena também criou uma conceptualização própria do mundo na qual os seus personagens se movem. As leis físicas desse mundo são aproximadamente idênticas às do mundo real, mas os enquadramentos psicológico e sociológico são muito diferentes. É o Universo Vilhena. Este universo é uma simplificação do mundo real (no sentido em que atribui a todos os entes de uma classe as qualidades- ou melhor, os defeitos- que só alguns terão) com dois aspectos particularmente interessantes: por um lado as premissas de base são sempre politicamente incorrectas; e, por outro, esse universo é utilizado como base, não de um ou dois contos, mas de incontáveis peças de humor de todo o tipo, desde cartoons gráficos até novelas de certo fôlego. Este ensaio discute (despretensiosamente, excepto pelo nome) algumas características do fascinante UNIVERSO VILHENA.

 

 

1- OS HOMENS E AS MULHERES

 

No Universo Vilhena há dois tipos básicos de mulheres: as perfeitamente perfeitas e as perfeitamente horrorosas (tipo "bruxa da Branca de Neve"). Todas procuram um homem que lhes pague o vison. Se casadas são adúlteras; se solteiras anseiam por sê-lo (adúlteras, entenda-se!)- clique na imagem à direita.

Só há, por outro lado, um tipo básico de homem: físicamente inferior (e ainda mais por comparação com a esculturalidade delas), ingénuo e facilmente manipulado pelas mulheres.

A legenda da fabulosa capa de O Mundo Ri à direita é: "Não, não é a sua gatinha; deve ter-se enganado no número..." (clique na imagem ao lado para apreciar a cena numa versão ampliada).

No Universo Vilhena na sua forma mais pura, o homem procura o sexo; a mulher o dinheiro... ( Nota do autor destas linhas: recuso-me a argumentar com quem sugira que o mesmo se passa no mundo real! )

As duas imagens à direita estão activas, para vosso estudo. Notar bem, na imagem aumentada, a deliciosa expressão do médico do "Dói-me aqui". Em "Como apanhar um marido" a imagem aumentada corresponde à capa do livro.

2- A IGREJA
 

Os eclesiásticos no seu conjunto são o alvo favorito da artilharia de Vilhena e transparece dos seus textos a alegria do ataque. No Universo Vilhena as suas duas características mais marcantes são: o conservadorismo e a avidez.

Os ataques não são pessoais e o autor chega até a mostrar simpatia pelos bispos mais progressistas. Também não são, nem contra a religião em si, nem contra a figura do Cristo. Os ataques e as brincadeiras dirigem-se, com raras excepções, contra prelados idealizados pela negativa (bispos proverbialmente gordos ou diáconos gangsterianos) e envolvem com alguma frequência freiras esculturais.

À direita, cartoon publicado no Fala Barato após a comprovação científica de que o sudário de Turim datava da época medieval. Abaixo três ilustrações escolhidas por mim, incluindo duas publicadas aquando das memoráveis campanhas contra a concessão de um canal de televisão à Igreja.

Ao lado, da esquerda para a direita e de cima para baixo: 1) "Outra vez no top, os padres, contentes,/ Já saem da casca, já mostram os dentes"; 2) "Têm jornais deles, radiodifusão,/ Vão meter a pata na televisão!": 3) "Moveram empenhos, fizeram promessas,/ O Chico dos Porsches foi nessas conversas"; 4) "Com suas cantigas levaram-no à certa/ (Nem o homem das botas lhes deu essa aberta)"; 5) "E agora que têm a faca e o queijo/ Vão pôr a tocar o seu realejo"; 6) "Com suavidade e devagarinho/ Levarão a água p'ro seu moinho"; 7)"Mandarão em todos, serão uns senhores/ E nós tão somente telespectadores 8) "E não admira se a sua missão/ Trouxer de volta a Inquisição"... (q.e.d.)

3- DEUS E O DIABO

Deus e o Diabo são entes reais no Universo Vilhena, mais materiais do que metafísicos (ocasionalmente Deus ou S.Pedro telefonavam mesmo ao saudoso patriarca de Lisboa para o admoestarem com semblante zangado: "António, só fazes disparates!".

No Universo Vilhena Deus é um velho conservador que criou tudo aquilo que o autor ataca e que vê todas as injustiças do mundo sem se lhes opôr. Além disso é adepto do F.C.Porto! Não surpreende portanto (do autor espera-se tudo...) que, como seu contraponto, o Diabo tenha necessariamente que ser visto positivamente. E é do Benfica!

Eis duas das conversas entre Deus e o Diabo, com balões ao estilo da revista americana "MAD":

Acima- Incidente entre o Céu e o Patriarcado de Lisboa: "António, António, só fazes burrices!!!" (Gaiola Aberta).

4- OS POLÍTICOS E A POLÍTICA

Não há políticos simultaneamente honestos e inteligentes no Universo Vilhena, e se os há não são dignos de menção. Na verdade o humor não se faz com encómios e, portanto, só a parte negativa do carácter é realmente interessante. O próprio Vilhena o diz, de maneira exemplar, dirigindo-se pretensamente a Cavaco Silva (Fala Barato nº24- Fevereiro de 1990): "Outra queixa e não pequena que tenho de si, sr. Primeiro Ministro, é que está a afastar da cena política algumas das figuras mais divertidas e caricaturáveis. Começou por tirar o apoio ao Abecassis que era um manancial de boa disposição, e, depois, não se empenhou o bastante para impor o Marcelo, que também daria pano para mangas. Resultado: temos na Câmara de Lisboa o Sampaio, que parece um tipo sério- logo, não dá grandes hipóteses de gozo!".

Depois da Igreja, os políticos são, historicamente, o alvo preferido de Vilhena. O agitado periodo que se seguiu à Revolução de Abril representou o auge do interesse pela política no Portugal recente e, como tal, as actualidades eram "tratadas" por Vilhena em cada número da Gaiola Aberta. Mais tarde, Cavaco Silva e os seus coloridos ministros proporcionaram uma época de ouro aos poucos humoristas portugueses. A Vilhena inspiraram alguns dos melhores textos do Fala Barato.

A produção do autor neste campo corresponde, sobretudo, aos periodos de publicação da Gaiola Aberta e do Fala Barato. Neste último houve, durante cerca de um ano, uma rubrica de boa memória que consistia na revisão do mês através de uma notícia diária cujo conteúdo era frequentemente político. O último governo de Cavaco Silva inspirou a Vilhena o título da revista "O Cavaco" que se publicou durante 17 meses mas que, estranhamente, conteve muito pouca sátira política, tendência que se confirmou com O Moralista e que reflecte o desinteresse da própria sociedade pelo tema. No que respeita à Política e aos políticos, o Universo Vilhena está resumido nas duas ilustrações abaixo...

5- O FUNCIONALISMO PÚBLICO

O funcionalismo público segundo Vilhena pode ser resumido nas duas imagens seguintes... Palavras para quê?

 

Ocorre, no entanto (e felizmente), a proverbial excepção que confirma a regra quase englobante: quando Vilhena pretende um referencial de excelência, utiliza o Laboratório Nacional de Engenharia Civil como uma espécie de contraponto à corrupção decadente que permeia a sua visão desencantada do enquadramento nacional (e isto apesar de o LNEC existir no âmbito do funcionalismo público).

Eis uma passagem de "1985, Terramoto em Lisboa" (ficção social e política escrita no final da década de 70) que se passa durante uma conferência de imprensa em que o Primeiro Ministro Lucas Pires comunica que o LNEC vai montar uma operação para remover os cadáveres que se amontoavam nas ruas após um terramoto que tinha devastado Lisboa:

"-Não lhes revelarei pormenores, por falta de conhecimentos técnicos, mas posso adiantar que o Laboratório Nacional de Engenharia Civil está neste momento a ultimar os preparativos de uma operação que nos libertará rapidamente de todos os cadáveres. (...) O Laboratório, com a colaboração da Sacor, da Gazcidla, da Mobil, da BP e da Petrogal vai fazê-los desaparecer por um processo inédito que ainda por cima nos permitirá produzir e armazenar grande quantidade de energia química. (...)

-Mas isso será viável?- perguntavam, pasmados, os jornalistas. -O sistema já foi experimentado alguma vez?... As companhias estrangeiras vão colaborar?... Os tipos da Petrogal não vão encrencar tudo?... O Laboratório será mesmo capaz de montar a operação?

-Penso que sim, que a coisa vai resultar,(...) O Laboratório de Engenharia Civil, como sabem, dispõe de um excelente staff, que escapou quase por inteiro ao terramoto; de um director extremamente dinâmico, o mega-engenheiro Ferry Borges; e de uma tecnologia avançadíssima, com ampla projecção internacional e intercontinental. Quando faz, faz bem! (...)".

O facto de o LNEC ser a única instituição nacional favoravelmente mencionada por Vilhena deve constituir um motivo de justificado orgulho para os seus técnicos e merece a reprodução do texto ao lado, datado de 1998, em que lhe atribuem verdadeiros superpoderes...

6- JESUS CRISTO

Jesus Cristo constitui a única anomalia no ordenado Universo de Vilhena: anda por uma Galileia sob o jugo romano mas onde há televisão, onde se pratica nudismo nas praias do Mar Morto, onde se fala do presidente Clinton, e onde se cruza naturalmente com Pinto da Costa, Santana Lopes, e muitas outras figuras da nossa praça. Isto é, não se trata verdadeiramente de uma personagem com materialidade no universo imaginário de Vilhena mas antes de uma "ficção dentro da ficção" criada para dar corpo a uma sucessão de parábolas que constituem a rubrica mais duradoura nas suas revistas: Jesus Cristo é a personagem central de um novíssimo testamento iniciado há cerca de 25 anos na Gaiola Aberta e no qual Vilhena reescreve cenas dos Evangelhos utilizando "colunáveis" da nossa praça. Por exemplo:
JESUS CURA PACHECO PEREIRA- Descendo do monte acompanhado de grande multidão, Jesus sentou-se junto à praia rodeado dos seus discípulos. E eis que um empedernido estalinista chamado Pacheco Pereira, tendo-se aproximado, ajoelhou dizendo: "Senhor, se quiseres, podes purificar-me". E Jesus, compadecido, estendeu a mão e tocou-o, dizendo: "Quero, fica limpo". E imediatamente o homem ficou limpo da tenebrosa ideologia, perante o assombro de quantos ali estavam. Disse-lhe então Jesus: "Vai e não digas a ninguém que fui eu quem te curou". E bendizendo o Mestre, o homem foi logo inscrever-se no PSD. (...)

Uma selecção de textos do Novíssimo Testamento, revistos e enquadrados por outros inéditos, foi recentemente editada como livro (com o nome "O Evangelho Segundo José Vilhena") constituindo a mais notável publicação do autor nos últimos anos. Quanto a Jesus, é o único personagem inteiramente positivo do Universo Vilhena o que comprova o seu estatuto fabuloso: veja-se a sua representação na magnífica ilustração abaixo, comparando-o com a do gordo bispo com a sempre presente caixa de esmolas...
 
 
E assim termina este ensaio destinada ao vosso e ao meu divertimento, mas também a chamar a atenção dos colegas sociólogos para o interesse de estudos do/ no Universo Vilhena (seguindo as pisadas traçadas pela tese pioneira de Rui Zink) em vez de perderem tempo em estudos notavelmente estéreis tais como levantamentos dos hábitos sexuais dos arrumadores de automóveis de Lisboa ou avaliações do gregarismo dos ciganos romenos estabelecidos em Aguiar da Beira. Assim espero!
 
João Manuel Mimoso